sábado, 30 de maio de 2009

A neuroeconomia e a escolha de Sofia

Estudos esclarecem funcionamento cerebral durante processo de tomada de decisões em sociedade
Ciência Hoje

O que você faria se achasse na rua um envelope com mil reais dentro e o nome do proprietário? Alguns iriam direto procurar o dono do dinheiro para devolvê-lo (a maioria, espero...). Mas outros incorporariam as notas alegremente ao seu patrimônio. Em ambos os casos, tomamos a decisão baseados em um conflito – que nosso cérebro resolve – entre as normas morais que aprendemos na infância, que nos pressionam a devolver o que não é nosso, e a perspectiva do ganho financeiro inesperado.

Se devolvemos o dinheiro, perdemos a possibilidade de comprar um novo celular, mas em compensação ficamos em paz com a nossa consciência. Se não devolvemos, assumimos (e engolimos) a culpa de não ter agido de acordo com as regras morais que a nossa sociedade adota.

Exemplo extremo desse processo de tomada de decisões é o que se vê no filme A escolha de Sofia, baseado no romance homônimo publicado em 1979 pelo norte-americano William Styron. Quem viu (ou leu) acompanhou o angustiante processo decisório de uma mãe em um campo de concentração nazista, forçada a decidir qual dos dois filhos seria levado ao forno crematório. A situação é tão emblemática que a expressão “escolha de Sofia” passou as ser usada como sinônimo para descrever tais dilemas.

Tomamos decisões como essas – simples ou complexas – a todo momento, e é o nosso cérebro que julga as variáveis que se opõem, geralmente de forma a maximizar os ganhos e minimizar as perdas. Os mecanismos cerebrais de tomada de decisões são o tema de um ramo da neurociência chamado provocativamente por seus adeptos de neuroeconomia. Esse campo, por sua vez, brota de um ramo maior conhecido como neurociência social, que aborda os processos cerebrais de interação entre animais em sociedade.

Meus amigos economistas, que têm densa formação nas ciências sociais, possivelmente não estarão de acordo com a “invasão” da sua área de estudos por uma ciência com outros métodos, objetivos e tradições. Mas talvez seja interessante estimular essa ampliação horizontal das ciências para atacar os problemas “de interface”, isto é, aqueles que podem ser considerados temas de um ramo da ciência ou de outro. Esse desenvolvimento tem sido muito frutífero, e foi assim que se originaram disciplinas como a físico-química e a biofísica, no campo das ciências exatas e naturais, bem como a psicofisiologia e a ecologia política, mais para o lado das ciências humanas.

A tomada de decisões

Controvérsias filosóficas à parte, como é mesmo que tomamos decisões na vida diária? Que processos nossa mente é capaz de realizar para chegar a um resultado em uma situação ambígua ou conflitante? Quais são os mecanismos cerebrais por trás desses processos mentais?

Os neurocientistas que abordam esse tema geralmente recorrem a experimentos nos quais voluntários participam de jogos enquanto têm seu funcionamento cerebral monitorado. As imagens de seus cérebros obtidas durante o experimento permitem revelar quais regiões entram em atividade quando esses indivíduos elaboram uma decisão sobre um problema. Em geral esses jogos envolvem ganhos ou perdas monetárias.

Voltemos à situação proposta no início da coluna para descrever um experimento desse tipo. Se eu apertar o botão da esquerda, decido devolver o dinheiro que achei na rua; se apertar o da direita, decido ficar com ele. Isso se passa dentro de uma máquina de ressonância magnética e, durante esse tempo, a atividade do meu cérebro é registrada, comparada matematicamente e codificada em cores para indicar as regiões mais ativas durante a tomada de decisões.

Os neurocientistas que trabalham nessa área sabem como é difícil bolar um teste que não seja contaminado por elaborações mentais indesejadas. Talvez, ao decidir, eu não pense em nada relevante à questão, mas escolha simplesmente um botão para o teste acabar mais rápido. Quem vai saber? Por essa razão os testes são bastante elaborados, dotados de estritas situações de controle que permitam focalizar exclusivamente o problema proposto.

Os jogos que simulam situações decisórias têm sido utilizados por vários grupos de neurocientistas e envolvem tipicamente apenas duas opções contrárias: uma arriscada, mas de maior valor, e outra mais segura, de menor valor. No primeiro caso, o indivíduo decide maximizar os seus ganhos; no segundo, trata-se de um sujeito cauteloso que prefere minimizar as perdas, uma opção mais segura.

A figura ao lado mostra que a região do córtex cerebral chamada ínsula se torna mais ativa quando a escolha é cautelosa, segura; e uma outra região do córtex, chamada área pré-frontal ventromedial, prediz escolhas arriscadas. Só que nem sempre a vida é assim, dualista. As decisões que precisamos tomar se apresentam em cenários bastante complexos e multivariados. Como resolver esse problema?

Escolhas complexas

Um artigo publicado ontem pela revista Neuron abordou essa questão, trazendo novidades. Trata-se do trabalho de um grupo da Universidade Duke, nos Estados Unidos, encabeçado por Vinod Venkatraman e Scott Huettel. O grupo raciocinou que seria complicado para o cérebro, do ponto de vista computacional, enfrentar situações decisórias que envolvem múltiplas variáveis – as tais decisões complexas. Por isso, seria possível supor que o cérebro dispusesse de mecanismos “simplificadores” que facilitassem a tomada de decisão.

Vejamos um exemplo: confrontado com a possibilidade de ganhos e perdas de diferentes valores, algumas pessoas poderiam adotar uma estratégia simplificadora, a fim de enfatizar a probabilidade de ganhar, seja qual fosse o valor. O objetivo do grupo americano foi avaliar se essas diferentes estratégias seriam diferenças de personalidade e se envolveriam regiões cerebrais distintas.

Eles propuseram a voluntários da própria universidade um tipo de jogo de tomada de decisões (valendo dinheiro!) com cinco resultados possíveis: dois de ganho monetário, dois de perda e um neutro (não ganhavam nem perdiam). Funcionava mais ou menos assim: em cada jogada, primeiro o indivíduo visualizava as opções que tinha: ganho de 80 dólares, ganho de 50 dólares, ganho zero, perda de 30 dólares, perda de 60 dólares ou outros valores semelhantes.

Segundos depois ele recebia uma opção de bônus em duas das opções: a escolha de ganho zero poderia receber alguns dólares, e a opção de perda máxima poderia diminuir um pouco. Ele finalmente escolhia a opção que mais lhe aprouvesse, apertando um botão correspondente.

A decisão envolvia pelo menos as seguintes estratégias: maximização do ganho (apostar no valor máximo), minimização das perdas (apostar no valor de perda máxima reduzida), e maximização da probabilidade de ganhar (apostar no ganho zero com acréscimo).

Aplicando a primeira estratégia, o indivíduo jogava para ganhar mais dinheiro; usando a segunda, tentava perder o menor valor possível; e a terceira estratégia visava a garantir a probabilidade de ganhar, mesmo para um pequeno valor. O jogo era aplicado dentro de uma poderosa máquina de ressonância magnética e, assim, era possível detectar quais regiões estavam mais ativas durante o processo decisório.

Diferenças de personalidade

Os resultados mostraram diferenças de “personalidade” no modo de decidir: a maioria das pessoas utiliza a estratégia cautelosa e prefere ganhar qualquer coisa a tentar ganhar o máximo ou mesmo perder o mínimo. Na interpretação dos autores do trabalho, isso representaria uma simplificação do processo mental de tomada de decisões quando o problema é complexo e multivariado, facilitando as coisas para o cérebro.

E mais, eles observaram que regiões cerebrais diferentes entravam em ação nesse caso: a área pré-frontal dorsolateral e a área parietal posterior. A primeira acionava o mecanismo de risco: ganhar o máximo ou perder o mínimo. A segunda acionava o mecanismo cauteloso e simplificador: ganhar o possível. Faltava um elo nesse circuito: alguma região que decidisse qual estratégia seguir. Elo encontrado, em outro ponto do córtex pré-frontal.

A conclusão é a seguinte: você precisa tomar uma decisão. Sua personalidade lhe indica uma estratégia mais cautelosa, que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) chama “pensamento sedentário”. Você aciona os circuitos cerebrais correspondentes e a sua escolha será pela opção de menor risco: ganhar o possível, se possível. Mas pode ser que você seja do tipo “pensamento nômade”. Nesse caso optará por estratégias de risco: ganhar o máximo ou perder o mínimo.

E ainda mais: quando você consegue seu objetivo, seu sistema de recompensa e prazer explode em atividade neural, como verificou também o grupo da Universidade Duke. Neurônios “felizes”, pessoa feliz! Quando acontece o oposto e você perde... bem, você sabe – aborrecimento, estresse, infelicidade. A vida é assim: toda decisão envolve uma emoção.

SUGESTÕES PARA LEITURA
P.W. Glimcher (2003) Decisions, Uncertainty, and the Brain. The Science of Neuroeconomics. MIT Press, Cambridge, EUA, 375 pp.
V. Venkatraman e colaboradores (2009) Separate mechanisms underlie choices and strategic preferences in risky decision making. Neuron, vol. 62: pp. 593-602.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
29/05/2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Os outros

Texto Alexandre Versignassi e Reinaldo José Lopes

Não estávamos sozinhos. Por 160 mil anos dividimos o mundo com outras humanidades. Até Exterminamos uma delas. E agora acontece algo sem precedentes: somos os únicos humanos na Terra. A regra da natureza, afinal, é a convivência entre uma multidão de parentes próximos, como tigres e onças ou cães e lobos – animais que, segundo o jargão da biologia, pertencem ao mesmo gênero. Nós mesmos passamos mais de 80% da nossa vida como espécie dividindo o planeta com pelo menos outros dois seres do gênero humano: o Homo erectus e o neandertal. Mas por que estamos sozinhos agora? É o mistério que vamos enfrentar nestas páginas. Para começar, ligue sua máquina do tempo e ajuste para uns 200 mil anos atrás.

Primeira parada, leste da África, onde hoje fica a Etiópia. É de lá que vêm os mais antigos fósseis da nossa espécie, o Homo sapiens. Esses restos têm entre 190 mil e 160 mil anos e apresentam uma anatomia quase idêntica à sua. O corpo deles, alto e com braços e pernas compridos, lembra o das tribos que hoje habitam a África Oriental. Por outro lado, os ossos são um pouco mais robustos que a média – Tim White, antropólogo da Universidade da Califórnia que estudou os resquícios, costuma dizer que eles dariam ótimos jogadores de rúgbi.

Nessa época, o mundo era bem diferente mais ao norte. O planeta estava numa Era Glacial (salpicada por intervalos mais quentinhos de alguns milhares de anos), que colocou um bom pedaço da Europa e da Ásia debaixo de toneladas de gelo. Mesmo a região ao sul das geleiras não era nada agradável, mas, aqui e ali, pequenos bandos de caçadores se saíam bem. Só que eles não tinham nada a ver com os sujeitos esguios que viviam na África. Eram homens com pouco mais de 1,5 metro de altura, porém fortes, atarracados, com um corpo talhado para conservar o máximo de calor em meio ao frio intenso. O cérebro desses caras era tão desenvolvido quanto o nosso, e eles já tinham desenvolvido a fala. Há 200 mil anos, esses homens do gelo eram os senhores da Europa. E hoje nós os chamamos de neandertais – já que encontraram as primeiras ossadas deles no vale de Neander, na Alemanha (e tal é “vale” em alemão).

Agora, se você der um pulo mais para leste, até a região que hoje conhecemos como Sudeste Asiático, concluiria que os etíopes altos e de pernas compridas resolveram visitar a Indonésia. Mas as aparências enganam: o cérebro desses aí era bem menor e o rosto estava mais para os personagens de O Planeta dos Macacos. Esse monstros já eram fósseis vivos naqueles tempos: os últimos remanescentes do Homo erectus – primeiro hominídeo a dominar o fogo, criar uma “indústria” de ferramentas de pedra e, mais importante, deixar a terra natal da família dos humanos, a África, e explorar meio mundo. Tudo isso há 1,7 milhão de anos.

O erectus, por sinal, é nosso ancestral direto. Se você puxar sua árvore genealógica para trás, vai ver que um deles foi seu tataratataravô (coloque mais 17 140 “tataras” aí). Mas com os neandertais a coisa é outra. Esses primos nossos não eram “humanos primitivos”, mas uma espécie “alienígena”, um primo que cresceu em outro ramo da árvore evolutiva. E não demoraria para batermos de frente com eles.

Briga de vizinhos

Foi na Palestina, há 100 mil anos. Aquele pessoal da Etiópia começava a sair da África em direção ao norte. Enquanto isso, neandertais saíam da Europa rumo ao sul. Resultado: quando as duas espécies chegaram à boca do Oriente Médio, deram de cara uma com a outra. “Esse furdúncio que tem hoje na Palestina já existia naquela época”, brinca o antropólogo Walter Neves, da USP.

Hoje, em Israel, há sítios arqueológicos com grutas de neandertais e de sapiens separadas por menos de 1 quilômetro. Não dá para saber se elas foram ocupadas ao mesmo tempo, nem se os dois entraram em guerra ali. Mesmo assim, a maioria dos pesquisadores acredita que as duas espécies conviveram no Oriente Médio por um bom tempo. E que, nos eventuais conflitos desses tempos, nenhum dos lados teria uma grande vantagem. É que os dois contavam com uma tecnologia idêntica. Se os fósseis dessa época desaparecessem, e só ficassem as ferramentas, não daria para saber o que é obra de uma espécie e o que é da outra. “Enquanto a situação foi essa, o homem moderno não conseguia entrar na Europa, nem os neandertais tinham como descer muito”, diz Neves. Era como se o território de um marcasse a última fronteira para o outro. Mas esse impasse de milênios acabaria. E graças a uma “mágica” que aconteceu há 50 mil anos.

Foi quando algo mudou o destino do Homo sapiens: uma mutação genética sutil, mas crucial, que alterou a estrutura do cérebro deles. O bicho ficou louco: passou a dividir sua vida entre o mundo real e um de fantasia. Com esse “defeito” nos miolos, o homem passou a imaginar mundos diferentes, que só existiam na cabeça dele. E vomitou esses mundos na forma de pinturas, esculturas, rituais religiosos.

Desse jeito, descobrimos como manipular não só coisas materiais, mas também idéias e conceitos. E aprendemos a transmiti-los com a ajuda de uma linguagem quase tão cheias de recursos quanto o inglês e o português modernos. Tudo isso deu à luz o primeiro boom tecnológico de todos os tempos. A África se transformou num Vale do Silício pré-histórico. O sapiens, que antes só fazia ferramentas de pedra ou madeira, diz um basta para a mesmice – chega de fabricar a mesma lança por milênios a fio. E acorda para o fato de que ossos, conchas, chifres e marfim também serviam como matéria-prima. Isso abriu as portas para novos utensílios. E tome arpões, facas mais afiadas do que nunca, lanças de alta precisão... De uma hora para outra, o sapiens tinha um arsenal.

Os cientistas sabem disso porque todos os vestígios que eles encontram dos primeiros 150 mil anos de vida do sapiens são ferramentas e armas simples, tipo machadinhas de pedra. Objetos de arte e coisas sofisticadas, como agulhas de costura, só aparecem por volta de 40 mil anos atrás, como se a maior parte da nossa tecnologia pré-histórica tivesse aparecido de supetão, em poucos milênios. Para muitos, só uma súbita mutação no cérebro justifica esse fenômeno.

Mas alguns pesquisadores acham que não foi bem assim. Defendem que o potencial para desenvolver uma cultura complexa já existia desde a origem do Homo sapiens, mas teria ficado “dormente”. Segundo eles, esse poder inato só foi empregado para valer depois que a situação dos bandos africanos apertou de algum modo. Pode ter sido uma virada climática – num período de seca brava, por exemplo, só os mais criativos imaginariam um jeito de guardar água da chuva para as épocas de vacas magras. Uma imaginação fértil passou a valer mais pontos, e só os sapiens mais inteligentes ficaram para contar história. Obras de arte simplórias, com 80 mil anos de idade, encontradas na África dão força para a idéia de que essa “revolução cultural” aconteceu devagarinho. Seja como for, há 40 mil anos o Homo sapiens já tinha ganho meio mundo. Expandiu-se pelo Sudeste Asiático, chegou até a Austrália... E agora, com o nosso arsenal tecnológico, estávamos prontos para avançar à Europa da Era Glacial. E encarar os poderosos neandertais na casa deles.

Cara a cara na Europa

Não era uma tarefa para qualquer um. Os neandertais eram biologicamente preparados para agüentar o frio, enquanto o sapiens vinha da sauna africana. O corpo dos nossos primos europeus, por exemplo, transpirava menos que o nosso, já que suor congelado pode matar de frio. Eles também tinham uma resistência fora do comum – seus ossos eram tão robustos que os neandertais aguentavam fraturas sem chiar. Sair na mão com eles, então, era roubada. Mas o sapiens não precisava disso. Foi só entrarmos na Europa, há 38 mil anos, para os neandertais começarem a sumir do mapa. Cientistas nunca encontraram sinais direto de conflito, tipo um esqueleto neandertal com um osso afiado (arma típica dos sapiens) na bacia. Mas as espécies competiram, sim, no mundo da Era do Gelo. E os humanos modernos levaram a melhor na tarefa que mais interessava: arranjar comida.

Na hora da caça, afinal, era covardia. Como as armas dos neandertais não eram grande coisa para matar a distância, eles geralmente entravam em confrontos suicidas com as presas. Análises em esqueletos deles mostram que os adultos tinham tantas fraturas quanto os peões de rodeio de hoje. Com o sapiens era diferente: suas lanças eram mais precisas na hora do arremesso, e eles ainda criaram uma espécie de catapulta manual que multiplicava o alcance dos dardos (um avô do arco-e-flecha). Desse jeito, o sapiens crescia e se multiplicava, deixando os neandertais sem território. E há 28 mil anos as duas últimas tribos de neandertais, em Portugal e na Croácia, pereciam. Era o fim de um reinado de 100 mil anos.

Sexo selvagem

Mesmo assim, pesquisas recentes indicam que os neandertais não entregaram os pontos tão fácil. Em Gibraltar, na extremidade sul da Espanha, pode ser que a espécie tenha resistido até 24 mil anos atrás. “Eu imagino um cenário mais complexo, de interação entre as duas espécies”, diz o pesquisador Clive Finlayson, do Museu de Gibraltar. Uma indicação disso é que algumas tribos de neandertais começaram a fazer seus próprios colares depois da chegada dos sapiens. Isso indica que os neandertais pelo menos observaram a cultura complexa dos vizinhos e ficaram estimulados a criar sua própria versão dela. “Isso é exatamente o que nós esperaríamos, com base em situações recentes de contato étnico entre povos diferentes”, afirma o arqueólogo Paul Mellars, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Mas é possível que essa interação tenha chegado mais longe, com as duas espécies transando e concebendo bebês híbridos? As várias amostras de DNA já extraídas de neandertais não parecem compatíveis com a de nenhuma pessoa viva hoje, mas isso não necessariamente prova alguma coisa: após milênios de cruzamento, o “sangue” neandertal poderia ter se diluído por completo. Uma análise recente do DNA de humanos modernos, por outro lado, aponta a existência de duas variantes de um gene que regula o tamanho do cérebro durante a fase de crescimento. Uma delas teria surgido há 1,1 milhão de anos, enquanto a outra só teria aparecido 37 mil anos atrás. Os pesquisadores da Universidade de Chicago que conduziram a análise especulam que essa variante – carregada por 70% da população moderna – poderia ter vindo dos neandertais, via sexo.

É nessa possibilidade que acreditam o antropólogo português João Zilhão, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, e seu colega americano Erik Trinkaus. “Os dados de Gibraltar só reforçam o fato de que os modernos não eram tão superiores assim”, argumenta Trinkaus. A dupla causou polêmica em 1999 ao publicar uma análise de um esqueleto de criança achado em Portugal, o chamado “menino do Lapedo”, com cerca de 25 mil anos. Segundo eles, a caveira mostra sinais de sangue neandertal, a começar pelo corpo atarracado, e seria o resultado final de um longo processo de mestiçagem entre as duas espécies. Para o resto da comunidade científica, porém, o tal garoto não passa de um sapiens troncudo. Mas Trinkaus ainda bate o pé: em novembro do ano passado publicou outro trabalho, concluindo que sinais de mistura entre sapiens e neandertal aparecem em esqueletos de 33 mil anos, encontrados na Romênia.

O último erectus

Na mesma época em que viveram esses supostos híbridos, o velho Homo erectus dava seus últimos suspiros na ilha de Java, Indonésia. Seus problemas tinham começado 600 mil anos antes, quando eles passaram a enfrentar a concorrência de um ser mais avançado, o Homo heidelbergensis. Esse hominídeo, que, por sinal, tinha descendido do próprio erectus, fez com ele a mesma coisa que nós fizemos com os neandertais: destruiu suas chances de sobrevivência. “Por isso mesmo o último refúgio deles foi uma ilha, já que num lugar desses você tem muito menos competição com outros hominídeos do que no continente”, afirma Walter Neves.

Apesar de esperto, o heidelbergensis não foi muito longe: acabou extinto bem antes do último erectus, há uns 200 mil anos. Só que antes de ir dessa para melhor ele já tinha feito um bom trabalho. Primeiro, se espalhou por boa parte do mundo. Depois, deixou dois descendentes bem peculiares. Na Europa, onde parte deles foi parar há 500 mil anos, seu corpo foi se adaptando ao frio devagarinho, até ficar bem resistente e com um cérebro superdesenvolvido. No fim das contas, esses caras ficaram tão diferentes que até mudaram de nome. Viraram os neandertais. Já os heidelbergensis que preferiram ficar em sua terra natal, a África, se transformaram em outra coisa: um ser de imaginação fértil, capaz de transformar delírios em realidade. Um bicho que costumamos chamar de “nós”.

Australopithecus afarensis

Uma superfloresta tropical que havia na África deu lugar à savana. Desse jeito, alguns macacos acabaram sem galho, e tiveram que se mudar para o chão. Então surgiu o afarensis, um macaco bípede que pode ter dado origem a toda a família dos humanos.

Homo erectus

Disputou as savanas da África com parentes mais simiescos, como o Homo habilis e o Homo rudolfensis. Com seu cérebro quase humano (que dá 2/3 do nosso), exterminou a concorrência e virou o primeiro hominídeo na Ásia.

Homo floresiensis

Ainda não é certeza se este aqui existiu mesmo. Em 2004, na ilha de Flores (Indonésia), desenterraram um esqueleto que parecia um erectus em miniatura, de apenas um metro. Essa espécie bizarra teria vivido até 12 mil anos atrás – mais do que qualquer parente nosso. Muitos, porém, acham que o tal esqueleto é de um humano moderno com problemas genéticos. E só.

Homo heidelbergensis

Descendente do erectus, foi o primeiro humano a surgir com um cérebro maior que o dos ancestrais, mas sem que o corpo aumentasse – uma amostra de que a inteligência já valia mais que a força. Deu origem ao neandertal e ao sapiens.

Homo neanderthalensis

São os “ursos-polares” do gênero Homo: a evolução os deixou fortes e resistentes a ponto de suportar temperaturas de até -30 oC sem chiar. Se não tivesse competido por recursos com o Homo sapiens, a espécie provavelmente estaria viva até hoje.

Homo Sapiens

Nossa história tem dois capítulos. No 1º, ele surgiu com a nossa aparência, há 200 mil anos. Mas só no 2º, que começou entre 50 mil e 80 mil anos atrás, o homem virou gente. E se tornou o megaprodutor de arte e tecnologia que arrasou a concorrência.

• A Pré-História da Mente - Steven Mithen, Editora Unesp, 2003

• O Colar do Neandertal - Juan Luis Arsuaga, Editora Globo, 2005

• Extinct Humans - Ian Tattersall, Perseus Books, EUA, 2001

SUPERINTERESSANTE

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A avareza na ficção

Balzac e Dostoievski, escritores consagrados do século XIX, viviam atolados em dívidas, não admira que ambos tenham criado personagens sovinas e egoístas

por Moacyr Scliar
THE NATIONAL MUSEUM OF THE
PERFORMING ARTS, LONDRES

Embora muitos já tenham esquecido, o Brasil viveu períodos de grandes surtos inflacionários, nos quais o dinheiro perdia rapidamente o seu valor. Era muito comum ver moedas nas sarjetas das ruas; ali ficavam porque valiam tão pouco que ninguém se dava ao trabalho de abaixar-se para apanhá-las. Isso nos remete a um fato básico da economia e da vida social: a rigor, o dinheiro é uma ficção. Mas exatamente por causa desse ângulo, digamos, ficcional, ele assume também caráter altamente simbólico. E não muito agradável, segundo Freud.


Sir Herbert Beerbohm Tree no papel de Shylock,
em O mercador de Veneza, de Shakespeare,
de 1914, por Charles Buchel

Observando que ao longo da história o dinheiro foi freqüentemente (e ainda é) associado à sujeira, o pai da psicanálise postulou que a proposital retenção de fezes, característica da chamada fase anal do desenvolvimento infantil, teria continuidade, no adulto, com a preocupação com o dinheiro. O avarento é um exemplo caricatural disso.

Aos escritores essas coisas não poderiam passar despercebidas, mesmo porque muitos deles tinham, e têm, problemas com dinheiro; Honoré de Balzac (1799-1850) e Fiódor Dostoievski (1821-1881) viviam atolados em dívidas, sobretudo o escritor russo, que era um jogador compulsivo. Não é de admirar que avarentos tenham dado grandes personagens da ficção. O primeiro exemplo é, naturalmente, o Shylock, de William Shakespeare (1564-1616) na comédia O mercador de Veneza, do fim do século XVI. Shylock era um agiota. Na Idade Média, o empréstimo a juros era proibido aos cristãos e reservado ao desprezado e marginal grupo dos judeus. Um arranjo perfeito: quando o senhor feudal não queria ou não podia pagar dívidas contraídas com os agiotas, desencadeava um massacre de judeus, um grupo desprezado e marginalizado, e resolvia o problema. Shylock sente-se desprezado e quando empresta dinheiro a Antonio, um mercador, pede em garantia uma libra da carne do devedor: ele quer que este se revele inadimplente e pague a dívida com a matéria de seu próprio corpo: um esforço desesperado e grotesco para ser respeitado.

Outro usurário que aparece na peça O avarento (1668), de Jean-Baptiste Molière (1622-1673) é Harpagon. Quanto mais rico fica, mais mesquinho se torna, e mais faz sofrer os filhos, o jovem Cléante, apaixonado por Mariane, moça pobre – Harpagon obviamente se opõe ao namoro – e a filha Élise, que ele quer casar com o velho Anselme. Além das brigas com os filhos, Harpagon tem outros motivos para se inquietar: enterrou em seu jardim uma caixa com dez mil escudos de ouro e é constantemente perseguido pela idéia de que sua fortuna será roubada. No fim, a avareza é castigada e Cléante e Élise podem se unir às pessoas que amam.

Avarentos também não faltam nos romances de Charles Dickens (1812-1870), um dos mais conhecidos é o personagem Ebenezer Scrooge de Um conto de Natal (1843), um homem velho, egoísta, insensível, que odeia tudo – até o Natal – uma festa que evoca bondade e generosidade. Scrooge maltrata seu empregado Bob Cratchit, que tem um filho deficiente físico, o Pequeno Tim, mas na noite de Natal é visitado por misteriosas entidades, os Espíritos do Natal, e muda por completo, tornando-se generoso, ajudando Cratchit e sua família. Em Silas Marner, novela de George Eliot (1819-1880) que usava o pseudônimo de Mary Ann Evans, o personagem, um misantropo que prefere o ouro às pessoas, aprenderá, assim como Scrooge, a sua lição. Ele é roubado, mas, ao tomar sob seus cuidados o menino Eppie, mudará, tornando-se um homem melhor. Em Eugénie Grandet (1900), de Balzac, somos apresentados a Félix Grandet, um rico e sovina mercador de vinhos, que se opõe à paixão da filha pelo sobrinho pobre.

Como se pode ver em todas essas obras, a obsessão pelo dinheiro resulta de uma personalidade repulsiva ou patética. Freud tinha razão: o poder simbólico do vil metal não é pequeno e tem atravessado os séculos incólume.

Mente e Cérebro

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Ciência Brasileira

No curto intervalo de duas décadas, entre 1981 e 2000, o Brasil passou da 28ª para 17ª posição no ranking mundial de produção de ciência. Os dados, relativos à elaboração de artigos científicos, são do Institute for Scientific Information (ISI), entidade de reconhecido prestígio em bibliometria.

Nesta posição, o Brasil está à frente da Bélgica, Escócia e Israel, entre outros, e bem próximo da Coréia do Sul, Suíça, Suécia, Índia e Holanda.
O avanço da pesquisa científica brasileira, apesar de dificuldades históricas que ainda permanecem, resulta de iniciativas tomadas há meio século, especialmente com a constituição do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência nacional de fomento.

Nos anos 60, além da criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), também foram implantados vários cursos de pós-graduação destinados à formação de novos pesquisadores. Desde então, novas agências estaduais de apoio à pesquisa foram instaladas e fortalecidas. E, em meados dos anos 80, a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia enfatizou a política científica e definiu áreas estratégicas para investimento e apoio.

Entre as dificuldades que ainda emperram o desenvolvimento da ciência no Brasil estão a concentração das investigações em universidades e institutos públicos, com uma contrapartida pouco significativa da iniciativa privada, além do fluxo irregular de recursos financeiros.

Os cenários mais recentes, no entanto, acenam com perspectivas promissoras em relação a estas limitações. Empresas privadas estão se dando conta de novas perspectivas de negócios envolvendo pesquisa, desenvolvimento e aplicação. Do lado dos financiamentos públicos, os fundos setoriais – percentual de recursos obtidos com atividades como exploração de petróleo e energia elétrica, entre outros – devem ampliar sensivelmente os financiamentos destinados à pesquisa científica.

Por incrível que pareça, um novo desafio do Brasil é incorporar sua grande quantidade de doutores no mercado de trabalho. Um expediente usado até agora vem sendo a concessão de bolsas de pesquisa. Mas essa é uma situação improvisada que não pode continuar. As universidade públicas dispõem de cerca de 6 mil vagas, das quais apenas 2 mil deverão ser preenchidas no curto prazo. O país precisa dessa mão-de-obra altamente qualificada. Para que ela tenha um horizonte profissional é necessária maior audácia da iniciativa privada.
O Fundo Verde Amarelo vai financiar a formação de recursos humanos, área em que o Brasil vem tendo progresso significativo. Os dados relativos a 2002 estimam em 110 mil o contingente de estudantes em cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado). Ao longo do ano 2000, segundo dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), foram formados 5.344 novos doutores. Em 2001, este número subiu para 6.300. Os mestres, que foram 18.374 em 2000, superaram os 20 mil no ano passado.


Astronomia, biotecnologia, física, medicina e pesquisa agrícola são alguns dos segmentos com desenvolvimento acelerado, projetando o país no cenário internacional. No entanto, outras áreas, como a matemática, de que parte destas pesquisas dependem, ainda não dispõem da quantidade desejável de pesquisadores.

Enquanto comemora conquistas recentes em genômica e ingressa no novíssimo campo da proteômica, o Brasil faz planos para desenvolver, rapidamente, também o segmento da nanotecnologia.

Existe uma demanda não atendida de ensino superior no Brasil, mas esta situação vem mudando. Em 1981, perto de 1,4 milhão de estudantes estavam matriculados nas redes pública e privada de ensino superior. Em 1994, este número subiu para 1,7 milhão e, em 1999, passou para 2,4 milhões. Apenas entre 1994 e 1999, houve um crescimento de 58,1% nos números do ensino privado. O cenário atual prevê um ligeiro e crescente aumento de pesquisas na rede privada, com a incorporação de doutores aposentados precocemente do setor público.

Scientific American Brasil

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A construção da felicidade

Psicólogos estudam como as pessoas podem moldar o próprio bem-estar voltando a atenção aos marcadores somáticos e investindo nas “pequenas alegrias” – a despeito dos contratempos que inevitavelmente enfrentamos

Às vezes, pequenos detalhes têm conseqüências de grande extensão. Por exemplo, eu devo à ausência de um coelho de chocolate o fato de não dirigir mais um Alfa Romeo. Explico: eu sempre fiquei satisfeita com o trabalho de um mecânico que trabalhava na oficina da Alfa Romeo. Um dia, soube que ele pedira demissão. “Por quê?”, perguntei, curiosa. “Mudou o proprietário da empresa e o clima não é mais o mesmo. As pessoas já não se sentem bem.”

“Mas o que está diferente agora?”, eu quis saber. “Difícil dizer. Na verdade, apenas detalhes, coisas que podem até parecer bobagem, mas fazem diferença. Antes, por exemplo, a mulher do dono da oficina sempre colocava um coelho de chocolate na caixa de ferramentas de cada um dos funcionários na época da Páscoa. Pode ser só um gesto de delicadeza, mas nessas horas percebemos que alguém ainda pensa na gente.” Eu podia jurar que a voz daquele homem com quase 50 anos estava trêmula naquele momento. Seja como for, o coelhinho da Páscoa não veio mais, o valioso mecânico foi embora e eu, diante da dificuldade de encontrar uma oficina confiável, próxima à minha casa, terminei comprando um carro novo.

Por trás dessa pequena história, há um importante objeto de pesquisa de psicólogos: a questão sobre como surgem a satisfação e a felicidade. A esperança de inúmeros estudiosos é que, se compreendermos melhor os mecanismos que possibilitam essas sensações, seremos capazes de produzir esse estado de forma objetiva em nós mesmos.

SENSAÇÃO DE MERGULHO: alegria imediata costuma surgir com atividades prazerosas, como a prática de um esporte ou o encontro sexual com quem amamos

Essa felicidade “artesanal” – que optamos por construir – compreende duas possibilidades que se complementam: o bem-estar atual, imediato, ligado ao momento presente; e o habitual, de longo prazo, que permeia várias instâncias da vida. A primeira forma pode ser descrita como uma experiência intensa de grande alegria. Ela inclui o desejo sexual, assim como todos os outros tipos de prazeres sensuais e vivências flow – ou seja, o mergulho intenso e entrega a uma atividade prazerosa. A sensação de relaxamento quando nos sentamos na varanda, na hora do pôr-do-sol, após um dia duro e produtivo de trabalho, ao lado da pessoa que amamos, colocamos as pernas para cima, ou o frescor estimulante que experimentamos durante um banho em uma cachoeira, também são exemplos de felicidade atual. Em todos esses casos, surge uma sensação agradável que alguns psicólogos chamam de “afeto positivo”. Muitas pessoas já descobriram que conseguem se motivar para realizar tarefas desagradáveis ao antecipar em sua mente a sensação boa que as preencherá após o término bem-sucedido da atividade.

Embora muita gente subestime sistematicamente os detalhes e as pequenas gentilezas, tanto na vida privada quanto na profissional, um meio bastante eficiente para a criação de afetos positivos é a atenção social: um sorriso, um elogio sincero, palavras gentis – ou mesmo um coelhinho de chocolate na Páscoa. O problema é que muitos aprenderam a se relacionar segundo um princípio que lhes parece lógico: “Se eu gosto de você, não preciso lhe dizer. Quando não gostar mais, então eu lhe digo”. Ou segundo um provérbio alemão da Suábia, que corresponderia a afirmar: “Não reclamar é o mesmo que elogiar”. Será mesmo? Essa parece ser a linha, avessa ao reconhecimento do empenho e dos bons resultados, adotada também em inúmeras empresas. No entanto, um bom ambiente de trabalho não surge, por exemplo, só porque se organiza, uma vez por ano, um encontro entre os funcionários, mas é construído muito mais com base em vários pequenos momentos que oferecem vivências de felicidade atual.

O caso do meu mecânico e seu coelho da Páscoa mostra o quão decisivos podem ser esses detalhes que fazem com que a pessoa se sinta vista e valorizada – o que nos faz pensar que poderia ser bastante produtivo que as empresas se preocupassem em manter uma cota de dedicação social. Com um gasto financeiro mínimo já seria possível elevar sensivelmente a satisfação dos trabalhadores e, com isso, o rendimento no trabalho. O mesmo vale para a convivência na família e com o parceiro. Gestos como enfeitar a casa com flores, se permitir uma tarde inteira de pura preguiça ou dividir o planejamento de passeios podem despertar a cumplicidade entre entes queridos – e afetos positivos.

Uma tática bem diferente também pode gerar felicidade atual – e a redução dos afetos negativos: evitar ao máximo tudo o que não faz a pessoa feliz. Pode parecer óbvio, mas nem sempre é fácil e muitos se surpreendem ao perceber que quase sempre é possível fazer mais por si mesmo do que se imagina num primeiro momento.

Nesse sentido, desenvolvemos na Universidade de Zurique um modelo de mini brainstorming, uma pequena “chuva de idéias”. A técnica sempre é utilizada quando uma pessoa não tem nenhuma idéia para solucionar um problema, ou quando já testou todas as suas idéias sem nenhum sucesso. A sugestão é que se aproveite o potencial de outras cabeças. Para isso, propomos que se imagine um cesto, enchendo-o com as sugestões de colegas, amigos e conhecidos. Entre elas, é preciso escolher as idéias mais interessantes.

Para aplicar a “chuva no cesto” a um problema concreto, escreva primeiro detalhadamente que situação, circunstâncias e desencadeador do passado levaram a qual afeto negativo. Por exemplo, no caso de obstáculos criados por colegas de trabalho, contado por um voluntário: “Na reunião de terça-feira, X estragou minha argumentação com uma informação que apresentou na última hora, sem me avisar, em uma atitude que parece ter sido de má-fé. Como ele não entregou seus dados antes da reunião, junto com os outros papéis, não pude preparar nenhuma resposta. Todos ficaram impressionados com o diagrama – mas eu tenho certeza de que ninguém entendeu direito a proposta. Quando vi o seu sorrisinho satisfeito, fiquei com muita raiva. E o que é pior: fiquei totalmente bloqueado. Fora um número impressionante de palavrões, não consegui pensar em mais nada”.

CUECA DE BOLINHAS

Sugerimos ao voluntário que anotasse, para seu controle, a intensidade de seus afetos negativos, por exemplo, em uma escala de 0 a 100. Em nosso exemplo, a raiva receberia 70 pontos, e o bloqueio, 95. Em seguida, imaginou o seu cesto de idéias e pediu ao maior número possível de pessoas confiáveis e discretas à sua volta que pensassem em reações adequadas aos truques de X e as anotassem.

A proposta é juntar no cesto as “idéias auxiliares” – quanto mais, melhor. Além disso, é interessante buscar apoio com o maior número possível de grupos sociais diferentes. A pessoa pode pedir opinião não apenas aos colegas mais queridos, mas também a pessoas que exercem atividades bem diversas, como, por exemplo, a professora de seu filho, o pedreiro da casa vizinha – ou até à sua filha de 14 anos. Se não quiser expor detalhes da própria vida, é possível apresentar o caso como uma situação hipotética. Esses cérebros acostumados a lidar com outras áreas de conhecimento, que memorizaram experiências vividas em contextos muito diferentes, produzem freqüentemente soluções mais surpreendentes e prestativas do que as de nossos pares que, em geral, tendem a pensar de forma muito parecida conosco. Alguns se surpreendem com o número (e principalmente com a diversidade) de sugestões que surgem. O próximo passo é escolher entre as opções as ações que mais eficientemente possam reduzir o afeto negativo. Então a pessoa terá opções suficientes para o próximo golpe surpresa de X. Uma possibilidade de lidar com a situação é propor que as novas informações sejam incluídas apenas na próxima reunião e sugerir que, em vez delas, se discuta qual o prazo máximo para que os dados da reunião sejam informados antecipadamente. Outro caminho é preparar os próprios dados e, se necessário, sacá-los rapidamente do bolso. É admissível também enviar um e-mail para X (com cópia para todos os outros participantes) dois dias antes da reunião, solicitando que apresente todos os seus documentos antecipadamente. Cabe, ainda, ter em mente que às vezes simplesmente não vale a pena irritar-se. E, para evitar isso, o melhor é se distanciar internamente e relaxar – seja respirando fundo ou imaginando X de cueca de bolinhas cor-de-rosa, com um focinho de porco, uma pequena molecagem que pode ajudar a pessoa a se preservar e evitar atitudes das quais pode se arrepender depois. Apesar de, sabidamente, ser muito difícil transformar um afeto extremamente negativo em positivo, reduzir o bloqueio mental de 95 para 50 no próximo ataque de X, ou mesmo conseguir olhar para o odiado diagrama de forma relativamente tranqüila, já representa uma boa melhora.

SÓ PARA SE AGRADAR

E a felicidade habitual, de longo prazo? Esta se manifesta como satisfação com a vida, em seus variados aspectos (relacionamento afetivo e familiar, amizades, segurança financeira, relações sociais organizadas, vida profissional, uso do tempo de lazer etc.), e depende muito do que é considerado importante para cada pessoa. O sucesso em algum desses aspectos (ou em vários deles), entretanto, não é, por si só, garantia de felicidade. Muitas pessoas vivem o “dilema da insatisfação”: simplesmente não se sentem felizes, apesar de terem boas condições de vida. Nesses casos, o desconforto costuma ter causas mais profundas e, em geral, só um processo psicoterapêutico pode ajudar a pessoa a compreender o que se passa.

Mas o caso inverso também existe, o chamado paradoxo da satisfação – felicidade subjetiva, mesmo em condições adversas. Isso nos leva a questionar até que ponto cada um pode contribuir individualmente para elevar o nível da própria felicidade habitual. Fazer o exercício de “estar presente” na própria vida e desfrutar cada momento como único (algo que de fato é), por exemplo, costuma ser produtivo. Em outras palavras: aproveitar toda oportunidade para se alegrar e desenvolver hábitos que nos tragam pequenos prazeres faz toda a diferença para a qualidade de vida. Para alguns, pode ser muito proveitoso observar o nascer do sol e sentir o aroma do café; para outros, prestar atenção à paisagem ou ouvir uma linda música durante o trajeto até o local de trabalho e desejar “bom dia” aos colegas antes de baixar os e-mails é uma forma agradável de começar as atividades diárias. Há ainda alguns cuidados consigo mesmo que, em geral, trazem bem-estar: após uma ou duas horas de trabalho, quando a concentração diminui, é importante fazer uma pequena pausa; e, pelo menos uma vez por semana, vale a pena comprar algo saboroso ou bonito (mas não necessariamente caro) para si mesmo.

Uma dica: diferente do que aprendemos (e vale para outras áreas da vida), neste caso a quantidade conta sim, e muito. O que importa é o número de pequenos desencadeadores de felicidade que trazemos para nossa vida. Ou seja: de nada adianta um fim de semana maravilhoso se os dias anteriores e os posteriores são extremamente estressantes – e o único reconforto é esperar ansiosamente pela próxima folga.

Por estranho que pareça, ter uma visão extremamente clara do mundo que nos cerca e de nossas limitações nem sempre é sinônimo de saúde. Há um século Freud chamou atenção para um fato curioso: pessoas deprimidas enxergam o mundo de forma mais realista e, portanto, acertam mais ao avaliar seu desempenho e suas chances. Otimistas, por outro lado, tendem mais a viver fora da realidade – mas sempre com um sorriso nos lábios. Isso nos leva a crer que talvez não seja prejudicial manter acesa certa dose de ilusão, embora a felicidade habitual não se baseie apenas na imaginação – ela tem base bastante concreta. Se uma questão fundamental a ser considerada é como podemos realizar da melhor maneira possível nossos desejos, esperanças e expectativas mais importantes, é preciso, antes de mais nada, saber quais são eles. Nesse caso, os chamados marcadores somáticos, sinais da memória emocional, na qual todas as experiências são armazenadas e classificadas. Essa referência mnêmica influi permanentemente sobre os dados captados do ambiente. A capacidade de uma pessoa saber o que é importante e bom para si mesma depende, em grande parte, da atenção que dispensa a essas mensagens enviadas por seus marcadores somáticos, o que ajuda na tomada de decisões fundamentais e a encontrar motivação para concretizar objetivos.

SINAIS DO EU

Marcadores somáticos funcionam como orientadores internos: são percebidos como sensações físicas, sentimentos ou uma mistura dos dois. Embora tenham origem na experiência emocional, sua base é um agrupamento de estruturas cerebrais que memoriza e classifica todos os eventos significativos. Vivências desagradáveis, que devem ser evitadas, produzem marcadores somáticos negativos; já as experiências que provocam prazer geram sinais positivos. No fundo, a memória das experiências emocionais constitui nada mais do que o “eu” de uma pessoa – ou seja, aquilo que a torna um indivíduo e que ela sente como sua essência mais profunda, independentemente de eventuais transformações que enfrente ao longo da vida. Sob condições favoráveis, a pessoa pode atingir um nível habitual de considerável satisfação. Aqueles que desenvolvem autopercepção para registrar conscientemente os sinais de seu eu – seus marcadores somáticos – adquirem maior consciência de si e podem, com isso, estimular ativamente o seu sentimento de bem-estar, independentemente das circunstâncias externas. A longo prazo, só fica satisfeito com sua vida quem tem autonomia para fazer escolhas e arcar com as conseqüências delas, ou seja, determinar as condições para sua própria felicidade, independentemente de opinião alheia, tendências ou modismos.

UOL - Mente e Cérebro

PARA CONHECER MAIS
Você é feliz. Michael Wiederman, em Mente&Cérebro, nº 174, págs. 34-41, julho de 2007.

A liquidez de um enigma. Maria Auxiliadora de A. Cunha Arantes, em Mente&Cérebro, nº 174, págs. 42-49, julho de 2007.

domingo, 10 de maio de 2009

Colunista destaca a importância das pandemias para a análise de fenômenos históricos e ambientais

Ameaça antiga

“Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas.” Lendo a frase, dá até para pensar que ela foi publicada no jornal de ontem, quando foram confirmados os primeiros casos da gripe suína no Brasil. Ou no diário de viagem de alguém recém-chegado do México.

Que nada. Quem escreveu essas palavras foi o médico e escritor Pedro Nava, em 1918, ao descrever do Rio de Janeiro a terrível gripe espanhola, que dizimou milhões de pessoas entre 1917 e 1918, na pior pandemia da história recente da humanidade.

Vítima da gripe espanhola no Rio de Janeiro
em 1919 (foto: reprodução / Fiocruz).

A descrição assim continuava: “Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível não era o número de casualidades – mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes, a impossibilidade de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva”.

A gripe espanhola, cuja origem ainda hoje é objeto de controvérsia, a princípio seria uma nova cepa do vírus influenza, surgida em 1916. O vírus só teria assumido sua forma mortal a partir de agosto de 1918, quando ganhou dimensão global – além da Europa, foram contaminados habitantes da Índia, Japão, China e das Américas.

Qualquer semelhança com os dias de hoje será mera coincidência? Espera-se que sim. Nestes tempos de gripe suína, quando o mundo mal se recuperou dos efeitos da gripe aviária, as comparações com episódios ocorridos em outros tempos são inevitáveis.

A gripe através dos tempos
De fato, embora diferente de outros males, como a febre amarela e a varíola – apenas para citar duas doenças comuns na história do Brasil – há muito tempo a gripe já era considerada uma ameaça para a humanidade. Consta que Hipócrates, o pai da medicina, em 412 a.C. relatou casos de doenças respiratórias que em semanas matavam seres humanos.

Bem mais recentemente, quando da chegada dos espanhóis às Américas na virada do século 15 para o 16, a gripe foi responsável pela devastação de grupos inteiros de indígenas, tendo sido fundamental no próprio processo de conquista e colonização das Américas pelos europeus.

A situação de superioridade que tanto favoreceu os colonizadores no continente americano não ocorreria da mesma forma na África. Lá, as vítimas foram os europeus, que morriam das doenças locais, ao ter contato com a população. Coincidência ou não, até meados do século 19, com poucas exceções (a mais conhecida é justamente Angola, cuja capital, Luanda, foi fundada em 1575 pelos portugueses), os europeus não haviam estabelecido colônias na África, limitando-se a comerciar produtos e escravos a partir de feitorias na costa.

Os dois exemplos mostram que, além da superioridade militar e das intenções políticas, fatores como vírus e bactérias também são importantes para a compreensão do desenrolar da história das sociedades humanas. Este é um dos argumentos do interessantíssimo livro Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas, do médico e biólogo norte-americano Jared Diamond.

Publicado no Brasil em 1997 (a edição original em inglês também é do mesmo ano) pela editora Record, o livro ganhou os prêmios Pulitzer e Aventis no ano seguinte. A obra teve grande impacto nos meios de comunicação: rapidamente se tornou um best-seller e foi adaptada para a televisão pela PBS em 2005, em uma série de três episódios.

Determinismo geográfico?
Diamond sustenta a polêmica tese de que a geografia e a própria biologia explicariam por que algumas sociedades se desenvolveram e outras não. Acusado de reviver o determinismo geográfico por uns e louvado por outros por levar em conta os impactos da sociobiologia em análises históricas, o fato é que Diamond voltou a inserir no panorama acadêmico a consideração das epidemias e pandemias como fatores importantes para a análise de fenômenos históricos e ambientais.

A leitura de seu livro deixa claro algo que hoje em dia é mais do que óbvio: doenças têm a ver com desenvolvimento humano; é impossível distinguir a situação ambiental do mundo sem, ao mesmo tempo, levar em conta fatores econômicos e políticos.

Edição brasileira de Armas, germes e aço, de Jared Diamond.

Nesse sentido, cabe questionar – se é que a tese dele faz sentido – o que significa a sequência de gripes letais, facilmente transmissíveis entre humanos, ocorridas nos últimos tempos. Ao mesmo tempo em que a gripe suína alarma o mundo, doenças como febre amarela e dengue voltam a assombrar populações de vários países. Só na Bahia, foram 5 mil novos casos notificados em apenas quatro semanas.

Que as novas e velhas epidemias, que trouxeram de voltas doenças erradicadas e que apontaram para o surgimento de outras, têm a ver com o desequilíbrio ambiental, não há dúvida. Mas sobra incerteza quanto às reais possibilidades de criarmos soluções para todas essas questões. Afinal, problemas em escala mundial exigem soluções em escala mundial. Até porque, daqui, não há para onde fugirmos.

Ciência Hoje On-Line

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
08/05/2009

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Livro resgata origens da internet para combater a velha ideia de um futuro pautado pela técnica

A utopia tecnológica

Ciência Hoje On Line

Na Feira Mundial de Nova York de 1964, um garoto de 7 anos se extasiava com a inteligência artificial e os foguetes espaciais que os Estados Unidos lhe prometiam para um futuro próximo. Hoje, 45 anos depois, parte daquele cenário se concretizou, mas a tecnologia continua ditando as cartas das nossas visões de futuro. Nas projeções para as próximas décadas, continuamos a enxergar a conquista interplanetária e uma presença cada vez maior de robôs — e, agora, atribuímos um papel central para a internet, considerada uma ferramenta para a revolução da sociedade. Não é estranho pensar que o futuro de 45 anos atrás é tão semelhante ao de hoje?


Essa reflexão levou o garoto do parágrafo acima — chamado Richard Barbrook — a escrever o livro Futuros imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global, que acaba de ser lançado no Brasil e está disponível para download. Instigado pelos motivos que levaram à permanência de elementos da utopia tecnológica por mais de 40 anos no imaginário ocidental, Barbrook — hoje professor da Universidade de Westminster (Inglaterra) — e foi às origens da ferramenta que deu aos Estados Unidos o controle sobre o futuro: a internet.

Nos 15 capítulos que compõem o livro, o cientista social britânico resgata de maneira fluida e instigante eventos históricos, tendências sociais e avanços tecnológicos que culminaram com o advento da internet. A partir da análise desses fatores, o autor busca explicar os interesses por trás da permanência do futuro tecnológico utópico que há décadas pauta nosso imaginário.

Embora de cunho majoritariamente histórico, Futuros imaginários não se prende ao didatismo de livros de história convencionais, pois sua linha de pensamento mais livre torna a análise de Barbrook rica em profundidade e perspectivas. Um conhecimento básico da história mundial recente — principalmente da Guerra Fria — é importante para que o leitor aproveite toda a riqueza de informações que o livro pode oferecer.

Controlar o presente pelo futuro
De acordo com Barbrook, a internet não nasceu de um acaso histórico do desenvolvimento tecnológico, nem foi idealizada originalmente pelos norte-americanos. Surpresos? “Sob o governo de Nikita Khrushchev [entre 1953 e 1964], um grupo de reformistas subiu ao poder na União Soviética e, liderado pelo acadêmico Axel Berg, teve a ideia de usar a cibernética como forma de reavivar os ideais originais da Revolução Russa”, conta o autor à CH On-line, de passagem pelo Rio de Janeiro para lançar seu livro. “Além disso, também viram na rede de computadores uma forma de discutir assuntos que eram tabus no governo de Stálin, como economia, genética, psicologia e sociologia.”


No entanto, embora a União Soviética tenha idealizado internet antes dos americanos, foram eles que a criaram de fato. Como os russos já haviam lançado o primeiro satélite espacial, os Estados Unidos teriam que tornar a internet realidade para estar à frente da corrida e atingir a hegemonia intelectual. “A ideia de um comunismo cibernético soviético foi tomada e transformada em ideologia norte-americana”, sintetiza Barbrook.


Jogo entre os enxadristas Boris Spassky, da União Soviética, e Bobby Fischer, dos Estados Unidos, no campeonato mundial de xadrez de 1972. A disputa refletiu a rivalidade entre os dois países no âmbito da Guerra Fria — episódio histórico central no surgimento da internet (ilustração de Alex Veness para a edição original de Futuros imaginários).

Portanto, assim como os outros artefatos tecnológicos apresentados como futurísticos durante a Guerra Fria, a internet foi criada para fins militares. “Tanto americanos quanto soviéticos queriam criar um sistema de comunicação que sobrevivesse a uma guerra nuclear”, conta o autor. A partir daí, argumenta ele, os Estados Unidos passaram a controlar o futuro — e o presente —, exportando-o para onde sua influência pudesse alcançar.

Um futuro mais humano
Para Barbrook, é importante perceber que, mesmo criada para fins militares, a internet é hoje utilizada de inúmeras formas contrárias ao seu objetivo inicial. São essas múltiplas facetas que impedem que seja conferido à internet um caráter prioritariamente neoliberal — como prenunciava o grande crescimento das empresas “ponto-com” na década de 1990 — ou cibercomunista, com o compartilhamento irrestrito e produção de informações, arquivos e ideias.

Assim, o argumento final de Barbrook em seu livro é que os futuros imaginários nos quais acreditamos há 45 anos precisam ser reformulados, pois se baseiam numa utopia tecnológica. “A internet é uma ferramenta útil, não uma tecnologia redentora”, defende ele. “Damos poder demais à tecnologia, e assim ignoramos que nós mesmos somos seus criadores e podemos intervir no futuro como quisermos.” Para o autor, esse fetichismo tecnológico deve ser combatido.

O futuro para Barbrook, portanto, deve se pautar não pela tecnologia, mas pelos seres humanos. “Só poderemos fazer algo concreto a respeito do futuro quando tomarmos consciência de que ele pode ser diferente do que aquilo que nos é oferecido.”

Futuros imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global
Richard Barbrook
São Paulo, 2009, Peirópolis
448 páginas – R$ 58,00
Tel: (11) 3816-0699
O livro também está disponível para download em formato PDF:
http://futurosimaginarios.midiatatica.info/futuros_imaginarios.pdf


Isabela Fraga
Ciência Hoje On-line
28/04/2009

domingo, 3 de maio de 2009

NYT: Cientistas tentam decifrar o fenômeno do "estava na ponta da língua"

Por Natalie Angier

Segundo a opinião de todos, meu avô, Nathan, tinha as ambições cômicas de um Jack Benny, mas o talento cômico de um John Kerry. Sem desanimar, ele sempre guardava um bloquinho de papéis no bolso. Caso ele ouvisse uma boa piada, sempre haveria um lugar para anotá-la.

Como eu gostaria de saber onde Nathan guardava os papeizinhos.


Assim como muita gente, eu nunca consigo lembrar de uma piada. Eu ouço, ou leio, algo hilário, rio alto o suficiente para constranger todo mundo na biblioteca, mas instantaneamente esqueço tudo - menos o fato, sempre popular numa mesa de jantar, de que eu "ouvi uma piada ótima hoje, mas agora não me lembro como era".

Para pesquisadores que estudam a memória, a facilidade com a qual as pessoas esquecem as piadas é uma daquelas esquisitices, aqueles pequenos deslizes na casca de banana neuronal, que acabam revelando uma quantidade surpreendente de coisas sobre a arquitetura por trás da memória.

Existem exemplos similares para ilustrar os caprichos e o mau gosto da memória - como por que você pode esquecer o aniversário de seu cônjuge, mas vai lembrar, até o leito de morte, de todas as palavras da música de abertura do programa "A Ilha de Gilligan". E por que você corta uma linha de dados, como um número telefônico é divido em blocos previsíveis e gerenciáveis, com o objetivo de memorizá-lo, e depois se desespera quando vai para o Reino Unido e ouve alguém dizendo um número "duplo quatro, duplo três?" E por que seus esforços para preencher um lapso de memória repentino ao perguntar a seus amigos "Ei, como era o nome do ator principal daquele filme que vimos na sexta-feira?" pode falhar, pois agora todos também esqueceram (amigos inúteis!).

Bem-vindo ao cérebro humano, seu trono de 1,3 kg de conhecimento com a almofada de alegria no assento.

Para entender a memória humana e seus tiques, Scott A. Small, neurologista e pesquisador da memória na Columbia, sugere uma analogia familiar à da memória do computador.

Temos nossa própria versão de um "buffer", ele disse, uma memória de curto prazo e escopo limitado com taxa de rotatividade mais alta. Temos o nosso equivalente ao botão "salvar": o hipocampo, localizado no fundo da parte anterior do cérebro, essencial para traduzir memórias de curto prazo em formas mais permanentes.

Nossos lóbulos frontais desempenham a função de busca, resgatando arquivos salvos para enfeitar a memória, conforme a necessidade. Apesar dos cientistas antes acreditarem que as memórias de curto e longo prazo eram armazenadas em diferentes partes do cérebro, eles descobriram que o que realmente distingue o duradouro do temporário é o quão forte a memória está encravada no cérebro, além da grossura e da complexidade das conexões capazes de unir grandes populações de células cerebrais. Quanto mais profunda a memória, mais prontamente e robustamente um conjunto de neurônios similares irão disparar.

Esse processo ajuda a explicar por que algumas coisas da vida nos fogem rapidamente e depois se recusam a serem capturadas. Música, por exemplo.

"O cérebro tem uma forte propensão a organizar informação e percepção em padrões, e a música funciona nesse sentido", afirmou Michael Thaut, professor de música e neurociência da Universidade Estadual do Colorado. "De uma perspectiva acústica, a música é uma linguagem superestruturada que o cérebro inventou e adora ouvir".

Uma simples melodia, com um ritmo e uma repetição simples, pode ser um dispositivo tremendamente mnemônico. "Seria praticamente impossível para uma criança memorizar uma sequência de 26 letras separadas se você as apresentasse apenas como uma linha de informação", disse Thaut. Porém, quando o alfabeto é transformado em música com suas frases melódicas, as crianças do pré-escolar conseguem aprendê-lo com facilidade.

O que são os jingles e canções temáticas de programas de TV mais capciosos? Apenas variações da canção alegre do ABC.

Piadas realmente boas, por outro lado, fogem da abordagem "do-ré-mi". Elas funcionam justamente por não estarem em conformidade com rotinas de padrão reconhecias, por subvertê-las.

"As piadas funcionam porque lidam com o inesperado, começam numa direção e depois desviam para outra", disse Robert Provine, professor de psicologia da Universidade de Maryland, em Baltimore County, e autor de "Laughter: A Scientific Investigation" ("Riso: Uma Investigação Científica", em tradução livre). "Aquilo que faz o sucesso de uma piada são as mesmas propriedades capazes de torná-la difícil de ser lembrada".

Isso também pode explicar por que as piadas mais lembradas são extremamente clichês. Piada de sogra? Sim, tenho várias na ponta da língua.

Pesquisadores da memória sugerem motivos adicionais de que ótimas piadas podem desconcertar o conhecimento comum. Daniel L. Schacter, professor de psicologia de Harvard e autor de "The Seven Sins of Memory" ("Os Sete Pecados da Memória", em tradução livre), afirma que existe uma grande diferença entre a lembrança literal de todos os detalhes de um evento e a lembrança genérica de seu significado geral.

"Nós, humanos, somos muito bons em lembranças genéricas, mas temos dificuldade em precisão", ele disse. Apesar de anedotas serem, contadas num plano mais amplo, as piadas são um sucesso ou um fracasso devido à nuance, à precisão e ao momento. Apesar da agitação emocional normalmente ampliar a memória, ela acaba erodindo sua atenção para aquele detalhe crucial. "Aquilo que estimula emocionalmente chama sua atenção para um objeto central", disse Schacter, "mas pode fazer com que seja difícil lembrar de detalhes periféricos".

Mesmo sendo bastante frustrante esquecer algo novo, é ainda pior esquecer o que você já sabe. Cientistas se referem a isso como o fenômeno "da ponta da língua", quando você sabe algo, mas não consegue colocá-lo para fora, e quanto mais você tenta, mais você erra.

É um distúrbio tão virulento que, quando você pede ajuda aos amigos, pode acabar deflagrando a chamada amnésia contagiosa. Por trás do travamento da língua estão os nervos delicadíssimos dos lóbulos frontais do cérebro e sua sensibilidade à ansiedade aos hormônios de resposta ao estresse. Os lóbulos frontais, procuradores frenéticos das memórias armazenadas, e desempenhadores de outras tarefas cognitivas importantes, tendem a travar quando a parte inferior do cérebro sente o perigo e exige o envio de energia em sua direção.

Por esta razão, a ansiedade pode ser o pior inimigo de alguém que realiza uma prova. A ansiedade de um quiz feito por um amigo pode fazer seus lóbulos frontais congelarem e sua mente virar um papel em branco. Também é por isso que você se lembra do fato frustradamente esquecido depois, tarde da noite, na tranquilidade da sua cama.

As memórias podem ser fortalecidas com tempo, prática, prática e prática. Porém, se existe uma parte do sistema que resiste à melhoria, esses são nossos "buffers", o tamanho da nossa memória funcional no qual alguns poucos itens podem ser temporariamente armazenados. Muitas pesquisas sugerem que podemos guardar na memória de curto prazo somente de cinco a nove blocos de informação a cada vez.

Os limites da memória funcional encorajam nossos cérebros loucos por padrões. Logo tentamos agrupar números telefônicos em porções menores e podemos lidar com números de até dez dígitos quando eles possuem código de área com frases previsíveis, como um zero ou um número 1 no meio. No entanto, com o surgimento de números telefônicos pouco ritmados de dez dígitos aleatórios, os pesquisadores da memória dizem que os limites da memória funcional foram ultrapassados. Você tem algum bloquinho de papel aí?