quarta-feira, 24 de setembro de 2008

"Os cientistas estão dando razão aos hippies", diz Lenine, que lança novo álbum nesta sexta-feira

PEDRO CARVALHO
Enviado especial ao Rio*

Sai nesta sexta-feira (19) "Labiata", o mais novo trabalho de Lenine. Seis anos após o último álbum de estúdio, "Falange Canibal" (2002), que marcou o fechamento da trilogia da qual também fizeram parte "O Dia em que Faremos Contato" (1997) e "Na Pressão" (1999), momento indica uma mudança de ares e possivelmente um novo período na carreira do cantor.

Logo de cara, "Labiata" demonstra uma sonoridade mais direta do que nos discos anteriores. Gravadas com a banda que acompanha Lenine ao vivo, em sessões enxutas, com poucos takes, as canções eram registradas conforme iam sendo compostas, privilegiando a energia do momento e a intuição de quem está acostumado a tocar em conjunto. Músicas como "O Céu é Muito", foram gravadas inteiramente "ao vivo" dentro do estúdio, todos os músicos ao mesmo tempo.

"Meu processo de produção foi se complicando cada vez mais durante minha carreira, até que chegou a hora de descomplicar. Cada vez mais, eu considero o simples e direto o melhor. Estou mais nu, mais exposto", diz o cantor.

Outra novidade do novo álbum foi o lançamento simultâneo em vinil de 180 gramas, para agradar aos audiófilos mais exigentes. "Fizemos isso para celebrar o passado e o futuro da música", diz Lenine. "No caso, o passado é o CD e o futuro é o vinil". O LP, que recebeu masterização especial e uma ordem diferente das faixas para funcionar melhor com os dois lados do disco, foi fabricado nos EUA e importado num lote inicial de 1000 cópias

Lenine começa a turnê de "Labiata" no dia 31 de outubro, em São Paulo, onde fará uma temporada de três dias no Sesc Pinheiros.

Leia abaixo a entrevista com Lenine:

UOL - Nesse disco novo você teve essa experiência de ir fazendo demos no estúdio durante o próprio processo de composição. Você compôs e gravou ao mesmo tempo?

Lenine - Quase isso. Na verdade o processo de compor continuou sendo solitário, entre quatro paredes, em casa à noite. Compunha em casa e no dia seguinte ia para o estúdio, criava uma batida e gravava voz e violão, já visualizando uma forma para a música. Foi assim com uma música por dia, na primeira quinzena de março. Terminados esses quinze dias, nós começamos a produzir o que saiu no disco.

O "Labiata" é fruto de duas experiências recentes que eu tive. Uma foi o "Acústico MTV" e a outra foi a trilha do espetáculo "Breu", do Grupo Corpo. No "Acústico" eu pude agregar no estúdio o espírito que do grupo que está comigo no palco, alguns deles há 17 anos. É uma família, mas cujo trabalho sempre foi adaptar comigo o repertório dos CDs para os shows. Desta vez foi o contrário, eu trouxe eles para dentro do estúdio. E simultaneamente ao acústico eu fiz a trilha do "Breu", que foi toda composta no estúdio como o "Labiata" e que eu tendo a considerar como um disco de carreira mesmo, tem uma autoralidade ali.

UOL - Isso te deu a liberdade de não se preocupar com as fórmulas de um disco convencional?

Lenine - Deu uma liberdade apavorante. Foi minha primeira experiência com dança. Já havia trabalhado com musicais e cinema, mas nunca com dança. E me disseram três coisas na primeira reunião: que eu fizesse a trilha, que fossem entre 40 e 50 minutos de música e a terceira foi "divirta-se, quando você achar que dá para mostra, você me mostra". Foi um estímulo e confirmou que aquela era uma possibilidade real.

UOL - Às vezes quando você se impõe parâmetros e limites a coisa flui com mais foco.

Lenine - Muito mais foco e intuição também. Foi opcional gravar assim, a serviço da composição e do projeto todo. É um risco calculado. A impressão que eu tenho é que fui sedimentando o meu trabalho e criando um público que espera este risco a todo momento, que espera sempre que eu me atire. Esse tipo de liberdade é tudo o que um artista quer.

UOL - Você tem um lado mais visceral do que o que se espera de um artista típico de mpb.

Lenine - Eu sempre digo que eu sou "pedreiro", para não dizer roqueiro, muito mais na atitude do que em qualquer outra coisa. Isso talvez fique mais evidente nos meus shows. Nos discos é bem diferente, porque o processo fonográfico é estranho. Você grava num ambiente hospitalar, asséptico e tem que extrair daquilo algum tipo de emoção que contagie as pessoas.

UOL - E neste novo trabalho você fez isso, criando de maneira mais instintiva?

Lenine - Perfeitamente. Usei a intuição e o instinto a serviço do trabalho. São músicas mais simples, mais coesas, com menos informação. O menos virou mais. Em contrapartida, é o meu disco mais pesado, justamente por ser íntimo. Trabalhei só com gente muito chegada. Duas palavras definem o disco: intimidade e natureza. Mesmo músicas que não são tão explícitas, como "É o Que Me Interessa" e "Martelo Bigorna" falam da natureza humana.

UOL - "Samba e Leveza" é uma parceria com Chico Science, que era pernambucano como você. Nos anos 90 o Brasil abriu os olhos para vários artistas de lá, como já havia acontecido com a Bahia na tropicália.

Lenine - Quando a gente fala sobre isso, vamos esbarrar na palavra "movimento". E movimento é uma coisa sectária, segregacionista, com uma unidade estética. E isso não aconteceu no mangue beat. Era tão difícil fazer que só o fato de alguém fazer algo já os unia. A diversidade em si unia. E isso é totalmente diferente da bossa nova e da tropicália. Talvez seja a hora de contar a história dos solitários, que não se associaram a nenhum movimento. Onde se encaixam Zélia Duncan, Jorge Ben, Djavan, André Abujamra, Chico César? São os solitários solidários. Por terem seus próprios caminhos, esses solitários são mais generosos. Isso nos une.

Nunca fui íntimo do Chico Science. Nos encontramos em turnês, dividimos o palco dentro e fora do país, era um amigo, mas não íntimo. Recebi um telefonema em casa de uma amiga em comum com a Goretti, irmã do Chico, que me disse que ela estava no Rio, louca para falar comigo. Eu não a conhecia, mas ela abriu o íntimo na minha casa. Me contou que o Chico, alguns dias antes de morrer, tinha chegado de viagem completamente apaixonado e estava cantarolando uma canção nova, romântica, que não tinha nada a ver com o trabalho visceral e vigoroso que ele fazia com a Nação Zumbi. E segundo com ela, a única pessoa que ela sentia capaz de pegar essas palavras e jogar para o mundo seria eu.

Logo abaixo do título "Samba e Leveza" está escrito "pra Goretti", porque foi ela quem me deu o subterfúgio para que eu incluísse o Chico na minha intimidade. Ela foi a musa disso tudo. Ela me abriu um livro de manuscritos dele com vários fragmentos. E sempre se repetia a palavra "sambá", como substantivo mesmo falando da paixão do Chico. Então, o que me levou a fazer a canção foi a intimidade que ela expôs para mim. Fiquei um pouco relutante no início até descobrir o fio condutor que foi nosso encontro. A música é uma mistura do material do Chico com esse tema.

UOL - O disco novo recebeu uma bela edição em vinil.

Lenine - Quando eu era menino eu trabalhava numa loja de discos importados e minha coleção era toda importada, porque a qualidade era muito melhor. Por isso, fiz questão que a versão em vinil do "Labiata" fosse feita no exterior, em 180 gramas. Me deu o maior orgulho. E em alguns países ele só vai sair em vinil. Para mim é o filé da propagação musical, um objeto de desejo.

Eu ainda tenho mais de mil discos dessa época, a maioria de rock. Um deles era o de uma banda de rock progressivo maluco, o Esperanto, que eu nem gostava tanto de ouvir, mas achava tão inusitado que mostrava para todo mundo.

UOL - Qual foi a influência primordial, que te fez querer ser músico?

Lenine - Led Zeppelin. Só fui estabelecer um contato direto com a música brasileira depois, com o Clube da Esquina. Num primeiro momento foi só o rock, radicalmente. Até os 17 anos eu achava todo o resto ruim. Mas inconscientemente, por causa do meu pai, eu tinha no arquivo oculto, no fundo da alma, tudo de Jackson do Pandeiro, Nelson Gonsalves, Ângela Maria.

Até que, quando entrei na faculdade, estava numa reunião do DCE e me mostraram o disco "Os Reis do Ritmo", de Jackson do Pandeiro. Achei que não conhecia, mas já na primeira música eu comecei a cantar e acabei cantando o disco inteiro. Fui para casa, abri a discoteca do meu pai e soube como acessar este arquivo oculto.

UOL - A base do Led Zeppelin é o blues e existe um paralelo evidente entre o blues e certos gêneros da música nordestina. Onde o nordeste está na sua obra?

Lenine - Eu acho que o ser humano só é formado de fato até os 17 anos. Depois disso é uma lapidação. Então o nordeste vai comigo onde eu for. É intrínseco, por mais que eu esteja há 30 anos no Rio de Janeiro, as letras t e d sempre serão para mim pronunciadas da maneira nordestina. É uma coisa de alfabetização, você aprende que a língua vai no dente.

O que eu quero dizer é que a minha formação foi em Recife. É uma cidade portuária, formada por ilha e ponte. Ilha tem a ver com isolamento e ponte com ligação. Pernambuco é uma palavra deste tamanho, cheia de letras e nenhuma delas se repete. Meu tipo de humor vem daí, o tipo de conduta, a esperança de viver cada vez melhor e não perder tempo com coisas pequenas, tudo isso tem a ver com a minha formação no nordeste.

Mas não posso esquecer que eu me formei como músico no Rio de Janeiro. Talvez seja mais fácil para um brasileiro médio reconhecer o que meu trabalho tem de nordestino, mas no exterior é o contrário, eles reconhecem mais o que ele não tem de brasileiro. Meu disco na França fica na prateleira de música contemporânea. No Japão é rock and roll. Na Inglaterra é rock contemporâneo. E tem também a pecha de "world music", como se existisse música de Marte ou Júpiter.

Hoje em dia meus discos saem em 20, 30 países, sempre com as letras traduzidas, já que 50% do meu trabalho é o texto. Mesmo em países onde a letra se perde, existe a possibilidade de pegar o disco em casa e saber o que eu estou dizendo.

UOL - O release do disco, escrito por seu filho João, fala sobre uma "perspectiva da catástrofe", que permeia trabalho e que o trabalho tem uma "mensagem punk". De onde vem isso?

Lenine - Ele explicitou algo que está presente em toda a minha obra. Se você pega o disco "O Dia Em Que Faremos Contato" isso já está lá com todos os elementos. Até mesmo porque ele, que é jornalista, identifica um tipo de jornalismo no meu trabalho.

UOL - É difícil manter o otimismo na década atual.

Lenine - Eu estou cada vez mais otimista. A letra de "É Fogo" fala muito disso, que os cientistas estão dando razão a nós, que antes éramos "meros hippies". Durante muito tempo, existia uma facção que dizia que estávamos destruindo o planeta, mas todo mundo pensava que era algo que só faria diferença dali a quatro ou cinco gerações. Até que descobriram que a destruição não era uma progressão aritmética e sim geométrica, com uma velocidade avassaladora. E o nosso discurso passou a ter razão.

O público médio já tem acesso à deterioração que estamos causando. A percepção de que tudo isso é realidade está engrossando as fileiras da "turma do bem". É daí que vem meu otimismo. Eu posso estar sendo excessivamente otimista, mas eu percebo isso. Apenas em momentos críticos é que você pode chacoalhar a consciência das pessoas.

*O jornalista Pedro Carvalho viajou a convite da gravadora Universal.

UOL Música

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